terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Tradições que provocam uma certa inquietação


Não há nada como as ocasiões de festividade em família. Aniversários, Natal, Páscoa - excelentes momentos para estarmos com aqueles de quem tanto gostamos. Vermos a tia Lúcia a tirar a placa à mesa, pousando-a a dois centímetros de distância do pão, que cedo perceberíamos que já não iríamos comer, o avô Fernando a babar-se de olhos fechados ao lado da lareira e a avó Teresa a perguntar-nos quando vamos casar, ter filhos, comprar casa e ganhar os jogos olímpicos. Nada melhor do que horas a fio entretidos com estas coisas.

Aquilo que me deixa bastante preocupado, porém, não tem a ver com as pessoas, mas sim com aquilo que elas fazem. As tradições ancestrais que nos foram passadas por, quiçá, o grande inventor das celebrações. Esse génio festeiro que nos ensinou a todos a arte de comemorar. E a questão é a seguinte: estaria esse indivíduo embriagado antes de se pôr a sugerir aquilo que deveríamos fazer, por exemplo, para celebrar o aniversário de alguém? É que das duas uma: ou ninguém se aproximou do seu hálito a aguardente ou todos julgaram que não haveria melhor ideia do que estar um bolo no centro de uma mesa, espetarem-se-lhe duas velas e entoar-se aquela que é, provavelmente, a canção mais deprimente que já ouvi. Eu compreendo que, na altura, não fôssemos tão liberais, mas a canção é mesmo aborrecida. Nos funerais não existe o hábito de cantar nada, mas se existisse, esta seria a minha sugestão. E o bolo? O que é aquilo? É que é tudo muito estranho. Porque é que me devo dirigir a um bolo e cantar para si, como se fosse ele o aniversariante? Estivemos este tempo todo a desejar os parabéns a um aglomerado de farinha, açúcar e ovos que nem sequer deveria querer estar ali, no meio de pessoas tão esquisitas.

Dá-me a ideia que o ser humano perde a racionalidade quando celebra algo. Somos tão picuinhas a resolver questões do âmbito social, levam-se meses a eleger um governante, outros tantos a escolher entre o Ronaldo e o Messi quem leva a bola de ouro, para depois nos desleixarmos nas festividades. Este é um assunto tão ou mais importante que os outros e merece o devido respeito e atenção. Quando se faz uma coisa, seja ela qual for, é sempre para ficar bem-feita. Não é desta forma, tal como este jovem nos propôs.

Olhemos agora para o Natal. Eu até entendo a relação dos presentes com aquilo que se passou na Bíblia entre os reis magos e tal, mas não me venham dizer que existe uma explicação válida para o meu avô começar a comer pão outra vez, logo a seguir ao jantar. É que as rabanadas são pão e é isso que o meu avô passa a vida a comer no Natal. E quando não está a comer isso, está a comer um bolo esquisito com fruta. E não é fruta como nós estamos habituados a vê-la, é fruta desidratada. Aquilo já foi um pêssego. Agora parece a orelha de um idoso. Mas pronto, eu fico-me pelo bacalhau. Pelo menos tenho razões para não me juntar a um vasto grupo de pessoas que reclamam, às vezes insultuosamente, com o natal, por nesta época engordarem 25 quilos. Mais uma vez, na minha opinião, o tal indivíduo que inventou as celebrações (vamos chamar-lhe José) esteve mal. Teve uma boa oportunidade para nos encher a mesa de comida boa, mas optou por enchê-la de comida que já foi boa. Bom trabalho, José. 

Pelo menos existe um momento festivo cuja celebração é bastante simples de perceber: a Páscoa. Quem é que não consegue ver logo a relação entre a ressurreição de Jesus Cristo e um coelho? Só mesmo quem estiver distraído. Imagino um diálogo semelhante a este entre José (o nosso tal inventor) e a sua equipa de assistentes: 

- Epá, para a Páscoa não estou a ver nada. Têm alguma sugestão? – perguntou José. 
- Ó Zé, inventa outra vez um tipo esquisito a entregar presentes. Ou melhor, para não te estares a repetir, inventa um animal. Olha, um coelho por exemplo. Os coelhos estão muito na moda agora. Só se fala em coelhos em todo o lado. É coelhos isto, coelhos aquilo. E em vez de presentes, usa ovos. E já que estamos numa de javardice, ovos de chocolate. – respondeu um dos assistentes. 
- És um génio, Tavares. Vamos embora. – terminou José. 

Duvido que a conversa tenha fugido muito disto que aqui está, pois a celebração da Páscoa é das coisas mais absurdas que já vi na vida. E eu sou do tempo em que o José Figueiras apresentava o “Muita Lôco”. 

Vai muito para além do senso comum tentar perceber a origem destes costumes. Se nos ficarmos pela teoria de que foi um tipo bêbado a inventá-las, ficamos bastante mais descansados. Porque estas pessoas têm sempre desculpa para fazer o que quer que seja: 

- Quem é que lavou os pés na caldeirada de marisco que eu deixei ao lume? – perguntou uma indivídua revoltada. 
- Foi o Fonseca, mas ele está bêbado, coitado do rapaz. – respondeu outro indivíduo condescendente. 

Parece-me que foi tudo decidido um bocado à pressa e sem olhar aos pormenores. 

A forma de estar de um individuo nestas festas também é algo merecedor de observação, e não só a natureza das mesmas. Durante a maior parte do ano, tudo deve ser feito com rigor, cautela e seriedade. As pessoas têm uma carreira e aparência a manter. Querem que olhem para si como um exemplo. Mas quando chega uma época festiva, vale tudo. Lá se vai a dignidade. Comem mais do que normalmente numa semana inteira, acabam com uma garrafa de vinho tinto a cada 15 minutos e não é importante se fazem batota a jogar ao bingo com os seus avós. E se calhar é por isto que não se liga muito ao fato das festividades tradicionais serem de cariz tão estranho. Porque o importante é que é para festejar. O quê? Não interessa, desde que exista comida feita por outra pessoa. Ninguém está muito preocupado em perceber se faz sentido fechar os olhos, morder duas velas e pedir um desejo a ninguém. Ou muito menos se faz sentido abanar uma garrafa de champanhe e tentar não acertar com a rolha no gato de um tio. Porque se o fizesse ia questionar a supremacia da nossa espécie em relação a todas as outras. 

Gostava de me ter sentado à mesa com aquele a quem, hipoteticamente, atribuo a criação totalmente ridícula de todas as celebrações que aqui enuncio e das quais todos os anos fazemos parte. Entre uma amigável conversa, aproveitaria a certa altura para lhe perguntar porque raio tenho eu de ser atingido com dois quilos de arroz carolino, caso venha um dia a decidir casar.